Embora celebrado do ponto de vista patrimonial, Brasília teve um custo bastante alto no que diz respeito ao meio ambiente.
No dia 2 de outubro de 1956, quando Brasília ainda não passava de uma ambiciosa maquete, o então presidente da República, Juscelino Kubistchek de Oliveira (1902-1976), fez um conhecido discurso público no qual sublinhou: “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta Alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino.”1
Do momento da fala de JK em diante, a paisagem do Planalto Central do Brasil passaria realmente por grandes transformações.
A cidade cresceu em tamanho, forjou identidade, sotaque e cultura próprias.
Foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO.
Essa transformação radical, no entanto, não aconteceu sem ônus.
A Brasília que conhecemos atualmente – uma capital com mais de 3 milhões de habitantes – também se deu às custas do meio ambiente, particularmente de seu bioma, o Cerrado.
O presente artigo tem o objetivo de discutir os impactos ecológicos proporcionados pela construção e pela expansão de Brasília.
Toda narrativa histórica é resultado do seu tempo, pois é sempre apresentada através das observações e de métodos construídos no presente.
Desta forma, em um mundo cada vez mais desafiado por questões ecológicas, o meio ambiente tornou-se uma dimensão fundamental do pensamento histórico.
Brasília: a disputa pelo cerrado
Desde seu planejamento inicia; até hoje, a cidade de Brasília foi idealizada e disputada por visões ora confiantes, ora conflitantes.
Confiantes como os ideais de progresso e desenvolvimento da nação, em voga no período de seu planejamento; conflitantes, por outro lado, como os impactos econômicos e ambientais causados por sua construção.
Foi neste clima de disputas, entre 1956 e 1960, que o governo de Juscelino Kubitschek impulsionou, nas palavras de Claiton Marcio da Silva e José Carlos Radin, “a longa marcha do desmatamento civilizador rumo ao Cerrado”, o bioma do Planalto Central do Brasil.2
Do sonho à realidade, Brasília custou caro.
Ou, melhor dizendo: dos traços de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer ao trabalho dos candangos, Brasília consumiu madeira.
Primeiro, a ferro e fogo, a vegetação do Cerrado foi forçada a ceder lugar às obras de terraplanagem.
Segundo dados da UNESCO, a mesma entidade que atribui à cidade a designação de Patrimônio da Humanidade, estima-se que entre 1954 e 2001 a vegetação da área do Distrito Federal foi reduzida em 73%.3
Depois, para a construção das estruturas de alvenaria, foram utilizadas tábuas de araucárias provenientes do Sul do país – região onde as madeireiras, ao longo do século XX, exauriram os pinhais da Mata Atlântica.
Nas últimas décadas, a aceleração do processo de crescimento urbano de Brasília – e de todo Distrito Federal – prossegue prejudicando as áreas urbanas e rurais não contempladas no planejamento do Plano Piloto.
O crescimento desordenado repercute, inclusive, no Eixo Monumental e nas Asas Norte e Sul da cidade, refletindo os negativos impactos de uma ocupação que não se manteve planejada e sustentável.
Além disso, a Capital Federal é polo de atração para milhares de migrantes, o que causa um grande fluxo migratório e consequente explosão demográfica acima da média nacional.
O crescimento populacional acima do planejado vem causando forte pressão sobre os recursos naturais desta área.
Dentre os atuais problemas ambientais de Brasília, destacam-se o desmatamento, a erosão, compactação e perda da fertilidade do solo, o assoreamento, poluição e redução da vazão dos mananciais.
Além da emissão de gases poluentes por parte da indústria (sobretudo pelas fábricas de cimento e asfalto) e por automóveis e caminhões – devemos lembrar que o uso de automóveis, símbolo de modernidade no período, foi priorizado pelo traçado de suas avenidas.4
Em cada um destes problemas, podemos perceber a participação ou a omissão do cidadão e do governo.
A construção de Brasília e a tão almejada modernização do país precisam, assim, serem repensadas sob o viés de uma história que vá além da política e do afã desenvolvimentista das narrativas de época.
Neste sentido, a metodologia da História Ambiental nos permite compreender como as dinâmicas de interação homem versus ambiente produziram uma verdadeira paisagem cicatrizada pela ação antrópica.
História Ambiental: uma perspectiva para Brasília
Uma das premissas da História Ambiental é entender que o nosso planeta é uma realidade antiga e diversificada, que já sofreu gigantescas transformações biofísicas ao longo de sua trajetória.
Por aqui já passaram inúmeras formas de vida, sendo que a espécie humana é apenas mais uma delas – uma espécie frágil e recentíssima, considerando os bilhões de anos em que os organismos vivos estão se disseminando sobre a terra.5
No âmbito da História Ambiental, a questão da devastação tem sido pensada cada vez mais como um problema global e não apenas local. Considerando que biomas e ecossistemas mantêm interações e interdependências dinâmicas, precisamos considerar todo processo histórico por meio de suas conexões com outros ambientes e sociedades, como apontam os estudos em História Global.
A Terra é um sistema integrado.6
Atualmente, como Capital Federal, Brasília representa um locus privilegiado para o debate ambiental.
E não só por conta de sua própria história, mas porque a “nova capital”, como quis Kubistchek em 1956, tornou-se “cérebro das altas decisões nacionais”.
Todos os dias, diversos interesses tramitam por suas atividades executivas, legislativas e judiciárias, gerando impactos sobre todo o território nacional.
A fragilidade da natureza perante a inconsequência de atos políticos e judiciários precisa ser considerada para além da ganância governamental e privada.
Conforme observou a historiadora ambiental Eunice Nodari:
Sempre que os interesses econômicos de uma minoria se sobrepuserem aos interesses maiores da sociedade, os reflexos repercutem não somente nos seres humanos, mas em toda a natureza.
As florestas acabam sucumbindo, e com elas se vai a sua biodiversidade e se perdem as perspectivas diferenciadas de sustentabilidade.7
A democracia e a participação popular que ela engendra, bem como seus processos de legitimação social, são fundamentais para o avanço da sociedade em soluções sustentáveis.
O presente e o futuro estão em nossas mãos e o alerta vem das lições que podemos aprender com o passado.
A História Ambiental, como Ciência Social, deve sempre tratar das sociedades humanas, mas também deve reconhecer a historicidade dos sistemas naturais.
O desafio, então, é construir um diálogo aberto e interativo entre sociedade e natureza.
Conhecer os aspectos históricos da devastação ambiental de Brasília nos permite reconhecer a necessidade de uma interação mais sustentável com a natureza, no intento de que tal reflexão provoque a sua valorização e preservação.
Imagem: Daily Overview
Fonte:Gil Karlos Ferri / Café História